Tudo é uma conversa

João Lima
3 min readAug 29, 2022

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Sentou um dia o carrasco junto ao que ia morrer

Na noite anterior ao desígnio que o sol traria

E a lua cúmplice de morte, meio triste

Invadiu com sua luz roubada barras de ferro, projetou um mosaico

No pescoço ainda pertencente

Uma mão rápida, dura, segurou uma pedra lisa

E o braço e o antebraço num vai e vem

Fez a pedra brincar de amor com o machado

Deslizou a lâmina em carícias, amantes que conhecem os corpos

Como se a vida fosse um música cruel

– Parece um violino!

O verdugo ajeitou o capuz, molhado pelo esforço, suor

Emprestou a outra mão a pedra, um par, aumentou o atrito

Uma nuvem negra passou frente a lua

E faíscas saltaram como estrelas cadentes, contrastantes

Nascidas do movimento obsceno

– Uma safira!

Continuou a afiar o instrumento de trabalho

Mudo. Pesado. Suspenso.

Enorme réptil sentado nas patas traseiras

Como se o asco fosse a única atitude

Como se o cobre das guerras fosse a cor do mundo

Mas a noite era calma, a noite dormia

Seu ressonar um riacho de pequena água

Seu cheiro hortelã em névoa fria

Seus braços, cabelos de Vênus

Seu coração um grão de areia impossível aos olhos

Conferiu a lâmina deslizando o dedo sobre o fio

A carne se rompeu perdendo a virgindade

E uma lágrima de sangue escorreu pelo machado

Como se ele chorasse sua função

Como se lamentasse a não vontade própria

O condenado levantou a cabeça lentamente

E seus cabelos fizeram ninhos sobre os ombros

– É a vida!

Uma lágrima de rubi desceu pelo olho esquerdo

A nuvem negra passara a lua

A lua de adeus a nuvem negra

Intensificou o atrito da pedra ao machado!

– É a morte!

Como se quisera sufocar um pensamento repentino

Menino

Abraçou a arma

O condenado passou a falar de coisas simples

Falou da paixão, de montanhas, de mares

Contou Romeu e Julieta

O amor de Dante por Beatriz

De Gala por Dali

O atrito aumentou. Ensurdecedor.

Falou de marinheiros limpos, bonitos, barbeados

De mulheres carnudas, sorridentes

De crianças

De Deus como se o fosse

De rosas, de hortênsias, de petúnias

O atrito. O tempo.

Dois seres numa pequena cela

Uma cela se transformando

Um palácio

Um país

Um planeta

O universo

O tempo…

A lua não mais passava

Passeava a cela ao seu redor

Em sua órbita

Negando

Criando outra medida

O atrito não mais existia

Nem a pedra

Nem a lâmina

Só duas figuras

A contar histórias

Chegara a hora da execução!

O carrasco tira o capuz

Há um rosto lindo de mulher

Descansando em ombros perfeitos

E uma lágrima de rubi no olho direito

Ultrapassam a porta da cela

Não há público, não há patíbulo

Só um cavalo esculpido em terra

Ele o monta

Ela o puxa pelas rédeas

Quixote e Dulcinéia!

Na distância fica a cela

A porta aberta

Prendendo palavras pelo ar

A morte é uma conversa

Tudo é uma conversa.

Execução de Léonora Galigaï, gravura do século 17

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Esse é um texto de meu pai, Almir. Eu o acho extremamente intrigante e só o conheci depois que ele partiu desse mundo. Penso demais sobre a afirmativa final e o paradoxo de nunca ter tido a oportunidade de falar com ele sobre tudo que está escrito aqui e, desde então, eu posto em todos locais possíveis para que possa não perder de vista jamais essa reflexão.

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